Introdução
A Lei n° 9.677/98 (Lei dos Remédios) alterou os dispositivos constantes do Capítulo III do Título VIII do Código Penal Brasileiro, que tipifica os crimes contra a saúde pública.
O legislador optou por adotar penas mais severas e desproporcionais criando novas condutas delituosas e ignorando princípios fundamentais da Constituição e do próprio Direito Penal.
A sociedade se depara constantemente com novos conflitos trazendo insegurança diante de fatos e acontecimentos, que acabam por influenciar valores e posições em um Estado onde a Lei é a principal fonte do Direito.
Assim, como resposta aos anseios e demandas sociais, o Poder Legislativo atua de forma imediatista criando e modificando normas que se distanciam dos princípios constitucionais penais, restringindo direitos fundamentais que foram conquistados ao longo da história.
As modificações na redação dos artigos 272 e 273 do Código Penal, tiveram por finalidade imediata conter as pressões populares após uma série de escândalos que ocorreram no Brasil no tocante à falsificação de medicamentos.
Dessa forma, percebe-se que na elaboração da supracitada lei, preponderaram fundamentos político-sociais em detrimento dos preceitos básicos da Ciência Penal.
A Lei dos Remédios também incluiu os crimes contra a saúde pública na classificação dos delitos considerados como hediondos, inviabilizando a concessão de diversos benefícios e garantias processuais aos agentes infratores.
A saúde é direito de todos e é dever do Estado intervir para que esse direito seja observado. Não apenas o direito à vida, mas à qualidade de vida são tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O Direito Penal se preocupa com a proteção desses direitos considerados essenciais para se viver de forma digna em uma sociedade.
No entanto, é imprescindível a observação dos princípios da proporcionalidade e da ofensividade para que as sanções aplicadas pelo Estado sejam adequadas e necessárias, levando-se em conta a probabilidade de se colocar em risco ou de efetivamente causar dano a um bem considerado como relevante pela sociedade.
Código Penal antes da Lei dos Remédios
De acordo com a antiga redação dos artigos 272 e 273 do Código Penal, verifica-se que a conduta que se buscava punir, era uma conduta que fosse capaz de colocar em risco ou lesar de forma efetiva a saúde, criando uma situação de perigo comum que atinge um número indeterminado de pessoas.
Antes da edição da Lei 9.677/98, tais normas incriminavam as ações que efetivamente pudesse gerar uma situação de risco à saúde das pessoas - crime de perigo concreto. Assim, a mera presunção de que o fato seria perigoso não era tipificada pelo Código Penal.
O tipo penal originalmente descrito no artigo 272, mencionava que a conduta somente seria consumada se a corrupção, adulteração e falsificação de substância alimentícia ou medicinal fosse nociva à saúde.
Nesse caso o legislador exigia para a configuração do crime, não apenas as modificações nas substâncias, mas também a nocividade positiva dessa modificação, ou seja, a capacidade efetiva de trazer riscos para a saúde do indivíduo (MIGUEL REALE, 1999)
O tipo penal, anteriormente descrito no artigo 273, mencionava que o crime seria consumado quando a alteração da substância alimentícia ou medicinal causasse nocividade à saúde das pessoas, suprimindo total ou parcialmente o efeito esperado das substâncias alteradas (MIGUEL REALE)
Portanto, para a adequação à ação penal necessário era que a conduta do agente causasse a supressão da composição normal de um medicamento ou alimento, diminuindo assim o valor terapêutico, curativo e nutricional dessas substâncias. (MIGUEL REALE, 1999)
Modificações no Artigo 273 do Código Penal
A Lei nº 9.677/98 modificou o tipo penal antes existente. Inicialmente, separou as condutas que recaem sobre substância alimentícia das que atuam sobre substância medicinal.
A nova redação do artigo 272 passou a tratar de forma igualitária a alteração que traz nocividade à saúde e a alteração que reduz o valor nutritivo do produto alimentício. Passou-se a considerar a mesma pena para as duas consequências, o que pode ser considerado desproporcional, pois são condutas que possuem grau de lesividade diverso.
Em relação ao artigo 273 aumentou-se a pena de reclusão de 1 a 3 anos para 10 a 15 anos, mantendo a multa cominada.
A Supressão do Elemento Constitutivo "Nocividade à Saúde"
A Lei nº 9.677/98 modificou a descrição do artigo 273 suprimindo elementos constitutivos que eram considerados essenciais para a consumação do delito.
Esse elemento, de fundamental importância, era a nocividade à saúde. Essa alteração possibilitou o distanciamento da ofensa ao bem jurídico que se deseja proteger da conduta incriminada, caracterizando o crime como de perigo abstrato e não mais como de perigo concreto.
Crime de Perigo Concreto vs Crime de Perigo Abstrato
Nos crimes de perigo concreto, o delito somente é consumado quando existe a probabilidade da ocorrência de um dano. Nesse caso, para configuração do tipo penal incriminador a conduta do agente deverá efetivamente produzir um perigo para o bem jurídico tutelado pela norma. (BITENCOURT, 2000)
Já nos crimes de perigo abstrato, a conduta presume-se perigosa por si só, não se exigindo a comprovação do efetivo perigo. (BITENCOURT, 2000)
Nos crimes de perigo abstrato, o dolo do agente na prática do perigo, é elemento dispensável. Isso porque para a configuração do delito basta a ação presumidamente perigosa sem considerar a vontade do agente de praticar ou não tal conduta.
O tipo penal atualmente disposto no artigo 273 é um exemplo de crime de perigo abstrato, uma vez que não há mais a exigência de nocividade positiva.
Sendo assim, para aqueles que defendem a teoria de que o dolo é elemento condicional e essencial para que o delito seja configurado, o crime de perigo abstrato restaria inconstitucional.
A Ampliação do Conceito de "Produtos Medicinais"
O legislador equiparou a conduta de falsificação de remédios à conduta de falsificação de cosméticos e saneantes. Essa equiparação pode ser questionada, pois é perceptível a desproporcionalidade entre a aquisição de um medicamento falsificado para a cura de uma doença e a aquisição de um sabonete que tenha sido objeto de adulteração.
O grau de lesividade é claramente diverso e assim deveria ser o tratamento sancionatório. Tratando-se da falsificação de medicamento a pena deverá ser mais rigorosa, sendo que tal conduta terá maior probabilidade de ocasionar a morte de um número indeterminado de pessoas, do que a adulteração de cosméticos e saneantes.
Tanto os cosméticos como os saneantes podem causar danos à sociedade, mas sua ofensividade deverá ser mensurada considerando cada caso concreto. Isso porque tais substâncias não apresentam uma ofensividade como os medicamentos apresentam à saúde da coletividade.
A Punição de Irregularidades Administrativas pelo Direito Penal
O Art.273, §1°-B dispõe que está sujeito às penas do Art.273 (reclusão de 10 a 15, e multa) quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo produto: sem registro; em descordo com a fórmula; sem características de identidade; de procedência ignorada; adquirido de estabelecimento sem licença da autoridade competente.
Segundo Miguel Reale, tal norma é caracterizada pelo:
"somatório da inflação legislativa, que alça à categoria de crime meras desobediências a ordens administrativas, e da redução demasiada do âmbito de liberdade, gerando-se por consequência, imensa insegurança jurídica pela crescente criminalização de infrações administrativas distantes da colocação do bem jurídico em perigo."
Tais condutas, por descreverem ilícitos de natureza administrativa, já possuem sanções próprias do ramo. Assim, a tipificação de tais condutas como infrações de natureza penal, acaba por ofender o princípio da intervenção mínima.
Por esse princípio, o legislador somente pode incriminar uma conduta quando perceber que os outros ramos do direito e com suas próprias sanções, não estão protegendo com eficiência o bem jurídico ofendido.
As infrações administrativas tipificadas como crime pelo legislador, já são rigorosamente punidas em legislação específica, qual seja a Lei 6.347/97 que dispõe sobre infrações à legislação sanitária federal, estabelecendo sanções como: advertência, apreensão e inutilização, interdição, cancelamento de registro e/ou multa (MIGUEL REALE, 1999).
A Falta de Registro
No art. 273, §1°-B, inciso I, verifica-se a criminalização de
"importar, vender (...) sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente."
Nesse caso, para que o crime seja consumado é necessário tão somente a ausência de registro no órgão competente, não se exigindo que, do ilícito administrativo, advenha consequências nocivas à saúde pública.
A Lei 6.360/76, em seu Art.12, dispõe que nenhum dos produtos sujeitos a controle pela vigilância sanitária, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde, estabelecendo o prazo máximo de 90 dias para tal registro ser concedido, a contar da data de entrega do requerimento.
No entanto, a inércia dos órgãos competentes para a concessão do registro
"produz elevado prejuízo para a saúde pública, pois na área da Farmacologia os avanços tecnológicos são constantes e a demora torna obsoleta a descoberta de novos medicamentos, em detrimento de benefícios à população, destinatária dos remédios." (Miguel Reale, 2000, p.427).
A venda de medicamentos de última geração foi transformada em crime hediondo, em razão do descaso ou desorganização da Administração, que não concede o registro no prazo legalmente previsto.
Assim, a legislação penal transfere a responsabilidade que deveria ser do Estado ao particular, penalizando-o criminalmente com penas rigorosas e flagrantemente desproporcionais. (MIGUEL REALE, 2000).
Produtos Adquiridos de Estabelecimento sem Licença
No art. 273, §1°-B, inciso VI, considera-se crime
"importar, vender (...) produtos adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente."
Conforme os Art.2º da Lei 6.360/76 somente os estabelecimentos autorizados pelo Ministério da Saúde e licenciados pelo órgão sanitário estadual poderão fabricar produtos medicinais e de higiene.
A Lei 6.437/77 em seu art. 10, I, considera infração sanitária o ato de instalar laboratório sem autorização e licença do órgão competente. Verifica-se que a mesma conduta não é tipificada como crime pelo direito penal. Entretanto, o ato de vender o produto adquirido de laboratório sem licença é penalizado com a pena de 10 a 15 anos de reclusão (MIGUEL REALE, 2000).
A Falsificação de Medicamentos no Rol dos Crimes Hediondos
O Art. 5º, inciso XLIII da Constituição Federal, estabelece que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, a prática da tortura, o trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.
Em decorrência da mobilização e pressão da sociedade em face do medo da criminalidade e da desconfiança perante os órgãos de controle social, influenciada pelos meios de comunicação, surgiu a Lei 8.072/90 - Lei dos Crimes Hediondos.
A falsificação de medicamentos foi uma questão amplamente abordada nos meios de comunicação no ano de 1998 e o Direito Penal foi chamado para exercer suas funções sancionatórias.
O legislador, cedendo aos anseios da população brasileira, enquadrou o a falsificação de medicamentos no rol dos crimes hediondos.
Em uma análise comparativa com os demais crimes hediondos, pune-se de forma igualitária condutas em que a intenção do agente é essencial e condutas onde a intenção do agente não é importante.
Diante dessa situação, verifica-se uma afronta ao principio da proporcionalidade e da individualização da pena.
Jurisprudência
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu em um julgado, pela inconstitucionalidade da pena do art. 273, §1°-B, inciso V:
O STJ decidiu que é inconstitucional a pena (preceito secundário) do art. 273, § 1º-B, V, do CP ("reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa"). Em substituição a ela, deve-se aplicar ao condenado a pena prevista no caput do art. 33 da Lei n.° 11.343/2006 (Lei de Drogas), com possibilidade de incidência da causa de diminuição de pena do respectivo § 4º.STJ. Corte especial. AI no HC 239.363-PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/2/2015 (Info 559).
Já o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre o tema. Todavia, existem precedentes do STF, contrários ao entendimento do STJ:
(...) 1. A violação reflexa e oblíqua da Constituição Federal decorrente da necessidade de análise de malferimento de dispositivo infraconstitucional torna inadmissível o recurso extraordinário.
2. O Poder Judiciário não detém competência para interferir nas opções feitas pelo Poder Legislativo a respeito da apenação mais severa daqueles que praticam determinados crimes, sob pena de afronta ao princípio da separação dos poderes.
3. In casu, o acórdão extraordinariamente recorrido assentou: "PENAL. PROCESSO PENAL. ARTIGO 273, § 1º e § 1º-B, INCISOS V e VI DO CÓDIGO PENAL. TRANSNACIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE AFASTADA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DOLO DEMONSTRADO. RECONHECIDO CONCURSO FORMAL."
4. Agravo regimental DESPROVIDO.
STF. 1ª Turma. RE 829226 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 10/02/2015.
Ressalta-se que tais precedentes não analisaram profundamente o tema objeto de análise. Assim, eventuais questionamentos das decisões emanadas do STJ, poderão ser rediscutidas no supremo e então, tal entendimento se restará pacificado na jurisprudência brasileira.
Conclusão
Diante do exposto, é inquestionável a inconstitucionalidade das normas trazidas pela Lei de Remédios. Isso porque tal Lei não observou diversos valores e princípios do direito penal-constitucional.
Os princípios da proporcionalidade, da intervenção mínima, da individualização da pena e da lesividade foram atingidos e violados pelas novas regras trazidas pela Lei 9.677/98.
Além disso as novas tipificações penais fizeram com que a norma incriminadora se distanciasse de forma significativa do bem jurídico tutelado, no caso, a saúde pública. Isso porque as condutas se tornaram presumidamente perigosas, independentemente do efetivo e concreto perigo ao interesse jurídico protegido.
A criminalização de infrações meramente administrativas afronta o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, que deveria tutelar apenas os bens considerados de maior relevância pela sociedade, atuando subsidiariamente em relação aos demais ramos do Direito.
Por óbvio, a criminalidade das condutas analisadas não pode ser ignorada, mas as penas devem ser aplicadas considerando o dano e o risco das condutas, como também o grau de lesividade gerado por elas.
A ofensa aos princípios supracitados é tema que tem ganhado, cada vez mais relevância tanto na doutrina quanto na jurisprudência brasileira, em virtude da busca pela efetivação dos direitos fundamentais presentes na Constituição Brasileira de 1988.
Referências
BITENCOURT, Cesar Roberto. O Código Penal Comentado. São Paulo: Edipucrs, 2000.
REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da lei dos remédios. RT/Fasc. Pen., São Paulo, a. 88, v. 763, p. 415, maio 1999.
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